Dados biométricos e privacidade: Entre a conveniência e o risco

A biometria deixou de ser um recurso futurista. Está nos nossos celulares, sistemas de segurança, portarias de prédios, caixas de lojas e até no controle de presença de alunos em escolas públicas. Com a promessa de agilidade e segurança, essa tecnologia avança a passos largos. Mas o que parece ser um avanço inevitável pode também encobrir um desafio perigoso: a erosão da privacidade. O que é biometria e por que preocupa? A biometria é uma tecnologia que permite a identificação ou autenticação de indivíduos a partir de características únicas e mensuráveis do corpo humano (biometria física) ou de seus comportamentos (biometria comportamental). Ao contrário de senhas ou cartões, que podem ser compartilhados, extraviados ou substituídos, os dados biométricos estão intrinsecamente ligados à identidade da pessoa, sendo, por definição, imutáveis e permanentes. Entre os exemplos mais comuns estão as impressões digitais, reconhecimento facial, íris, geometria da mão, vascularização, voz, DNA, além de características comportamentais como forma de andar, dinâmica de digitação, assinatura e expressões faciais. Essas informações são amplamente utilizadas em sistemas de controle de acesso, autenticação bancária, programas de benefícios sociais, vigilância pública e em plataformas digitais e aplicativos móveis. No entanto, apesar da eficácia e praticidade, o uso da biometria levanta preocupações relevantes do ponto de vista ético, jurídico e técnico. Um dos principais pontos de alerta está na natureza irreversível desses dados. Ao contrário de senhas, que podem ser alteradas em caso de vazamento, uma íris ou uma impressão digital exposta em um incidente de segurança não pode ser substituída. Isso significa que uma violação representa um risco vitalício à identidade da pessoa. Além disso, a biometria possibilita o rastreamento de indivíduos à distância e, muitas vezes, sem seu conhecimento, como no caso do reconhecimento facial por câmeras instaladas em espaços públicos. Esse tipo de prática pode levar à vigilância massiva e ao comprometimento das liberdades civis e dos direitos fundamentais. Outro ponto de preocupação diz respeito às desigualdades algorítmicas. Sistemas biométricos, especialmente os de reconhecimento facial, podem apresentar vieses de desempenho, como taxas mais altas de erro em mulheres, pessoas negras e outras minorias. Isso se deve a bases de dados de treinamento desequilibradas e pode levar a discriminação algorítmica. Soma-se a isso o risco de uso indevido dos dados, como o aproveitamento para finalidades não informadas ao titular no momento da coleta — por exemplo, análises comportamentais, marketing direcionado ou compartilhamento com bases policiais e comerciais sem consentimento válido. No campo da cibersegurança, a centralização de dados biométricos em grandes bases de governos, instituições financeiras e empresas de tecnologia representa um atrativo para criminosos, já que eventuais brechas de segurança podem comprometer informações sensíveis e inalteráveis. Diante desse cenário, a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018) classifica a biometria como dado pessoal sensível, impondo requisitos rigorosos para sua coleta, uso e armazenamento. Entre as obrigações estão a necessidade de consentimento específico e destacado, a definição clara e legítima da finalidade, a adoção de medidas técnicas e administrativas de segurança da informação, além da realização de Relatórios de Impacto à Proteção de Dados Pessoais (DPIA) nos casos de alto risco. Em suma, embora a biometria represente uma importante ferramenta de segurança e autenticação, seu uso demanda critérios técnicos e jurídicos rigorosos. Quando mal utilizada ou desprovida de governança adequada, ela pode transformar-se em um vetor de risco para a privacidade, a dignidade da pessoa humana e a liberdade individual. O avanço tecnológico, especialmente com a disseminação da inteligência artificial e da vigilância algorítmica, torna o debate sobre a biometria cada vez mais urgente e essencial para assegurar os direitos fundamentais no ambiente digital. O uso indiscriminado no Brasil O estudo mais recente da ANPD revelou que diversos estados brasileiros já utilizam reconhecimento facial e outras formas de biometria em escolas, aeroportos, sistemas de segurança pública, farmácias e até no varejo. Casos como o da ViaQuatro, em que câmeras escondidas em totens publicitários do metrô captavam expressões faciais de passageiros para medir reações a anúncios, provocaram reações judiciais e culminaram em indenização por dano moral coletivo. Em outros contextos, como no programa de embarque +Seguro do Governo Federal, já há integração da biometria facial com dados do Serpro, em voos domésticos nos aeroportos de Congonhas e Santos Dumont. E no setor de saúde, testes com biometria da íris vêm sendo explorados para autenticação de pacientes inconscientes ou sem documentos. Clubes de futebol e o novo dever de identificar torcedores Um setor particularmente impactado por essa evolução é o esportivo. A nova Lei Geral do Esporte (Lei nº 14.597/2023) e iniciativas como o PL do Estádio Seguro (PL nº 4.438/2020) impõem aos clubes de futebol e às entidades organizadoras obrigações específicas quanto à identificação biométrica de torcedores. A ideia é coibir práticas como o racismo, a violência nos estádios e o descumprimento de restrições judiciais impostas a torcedores. A biometria facial, nestes casos, surge como alternativa preferencial. A Confederação Brasileira de Futebol (CBF), inclusive, firmou acordo com o Ministério da Justiça para viabilizar um sistema nacional de reconhecimento facial nos estádios. Os clubes, por sua vez, precisam adequar suas operações — desde a infraestrutura de captura das imagens até a adoção de medidas técnicas e organizacionais exigidas pela LGPD, como a elaboração de Relatórios de Impacto à Proteção de Dados Pessoais (RIPD). Além disso, as bases legais para o tratamento desses dados sensíveis devem ser sólidas, o que inclui a análise do legítimo interesse, da proteção do crédito ou da execução de políticas públicas quando realizadas em cooperação com o Estado. Não basta “implantar câmeras”; é preciso pensar em governança de dados, segurança da informação e transparência — sob pena de os clubes responderem administrativa e judicialmente. Entre a inovação e a vigilância disfarçada Entre a promessa de inovação e o risco da vigilância disfarçada, os sistemas biométricos têm avançado sob o manto do discurso de segurança pública e modernização tecnológica. Cada vez mais cidades e instituições públicas e privadas investem em ferramentas de reconhecimento facial, leitura de íris e outras formas de identificação automatizada com